quarta-feira, 16 de abril de 2008

A ti noite, minha eterna conselheira.

PRÓLOGO

Era uma vez…uma menina que, como todas as meninas, vivia num mundo cor-de-rosa. Um mundo repleto de felicidade, príncipes e princesas. Um mundo ao qual muitos chamariam um mundo utópico. E ela era tão feliz!!! Acreditava que só ela era dona do seu mundo. Só ela mandava nos seus “anjos maus” que, por vezes, invadiam a bolha de felicidade em que vivia. Nessas alturas a menina tinha medo…chorava…tinha medo…chorava…mas, depois, levantava-se e pedia aos “anjos bons” para mandarem os anjos maus para a bolha negra que se via lá muito, muito, muito no fundo. Por vezes quase desaparecia, mas ela estava lá.

Então, os “anjos bons” faziam a vontade à menina e ela voltava a ser feliz. Voltava a correr e a cantar. Todos lhe diziam que aproveitasse bem aquele mundo utópico enquanto ele existia porque um dia ele iria morrer, morrer, desaparecer para nunca mais voltar. Todos os dias a menina ouvia a mesma frase. Até que um dia, não aguentando mais ouvir aquelas pessoas más dizerem que o seu mundo ia acabar encostou-se a uma parede, deslizou, sentou-se e chorou. Chorou até não poder mais.

Passadas muitas horas, ainda hoje a menina não sabe dizer quantas…sentiu uma mão no ombro. Olhou para cima e viu um rosto calmo, com um olhar brilhante, cristalino, da cor do mar.

- Quem és tu? - perguntou a menina.

(O menino faz um rosto enigmático)

- Quem és tu? - voltou a perguntar a menina. Com receio, mas sem medo, pois aquele olhar não o permitia.

- Anda. Vem comigo. Vem, dá-me a tua mão.

- Não posso. Não me deixam sair com pessoas que não conheço. Dizem que elas me vão fazer mal.

- E também te dizem que o teu mundo vai acabar, não é?

- Sim, mas…

- Então vem comigo. Dá-me a tua mão e deixa-me guiar-te.

Então, a pequena mão da menina uniu-se à mão do menino mistério. Os dois sorriram e olharam-se, num olhar tão profundo como o mar que a cor dos olhos do menino mistério fazia lembrar.

Caminharam juntos. O menino mistério contou-lhe histórias do seu mundo e a menina foi vendo que o seu mundo não precisava de ser destruído como tantas e tantas pessoas lhe disseram. Apenas precisava ser completado.

Então a menina disse ao menino mistério:

- Deixa-me conhecer o teu mundo.

Nessa altura, o olhar do menino mistério perdeu o brilho e ele desapareceu. A menina ficou novamente só. Sem saber o que fazer.

As horas passaram. Os dias passaram. Os meses passaram. Os anos passaram. As pessoas passaram. E a imagem do menino mistério não desapareceu dos olhos da menina. Ela continuava a viver no seu mundo utópico, com os seus sonhos e os seus objectivos. Mas o menino mistério não desaparecia do seu pensamento. A menina chorava, gritando desesperadamente pelo menino mistério mas ele não a ouvia. Parecia que tinha desaparecido para sempre.

Até que um dia o menino mistério voltou. O mesmo unir de mãos. O mesmo olhar tão profundo como o mar que a cor dos olhos do menino mistério fazia lembrar. O mesmo pedido:

- Deixa-me conhecer o teu mundo.

De novo o olhar do menino mistério perdeu o brilho e ele desapareceu. De novo a menina ficou só. Sem saber o que fazer.

A menina bem que inventava brincadeiras novas. Fazia desenhos novos. Olhava para fora da sua bolha utópica e via a bolha negra cada vez maior e cada vez mais assustadora. A menina gritava com medo. Pedindo que alguém a ajudasse. Mas ninguém a conseguia ajudar a esquecer o brilho dos olhos do menino mistério. Aquele verde. Aquele sentimento de calma. Aquela segurança. Já nem os “anjos bons” a ajudavam. De novo a lembrança. A insegurança. A tristeza. A impotência. A desilusão. As lágrimas que já não se conseguem conter e que correm sem parar. De novo o coração a doer com tanta tanta força que parece que vai rebentar a qualquer momento.

- Deixa-me conhecer o teu mundo.

...

Sete da manhã, o despertador toca mas há muito que estou acordada.

Deixei-me levar pela escuridão da noite. O frio de Fevereiro. A calma. O silêncio, a paz. Vou até à varanda e fumo um “Slims” (aqueles cigarros que comparas aos cigarros de chocolate que comíamos em crianças e com os quais imitávamos os adultos – sim, porque naquela altura apenas os adultos fumavam – na ingénua vontade de sermos como eles). Fumo mais um cigarro e sinto-me cada vez mais embrenhada pela noite.

Três da manhã e estou tão desperta e tranquila como há muito não me encontrava.

Deito-me e adormeço passado pouco tempo. Sonhos...ilusões...mais sonhos...acordo...adormeço...acordo...adormeço...

Sete da manhã, o despertador toca, mas há muito que estou acordada.

...

Levanto-me.

Demoro-me mais um pouco no duche, a água a cair no corpo relaxa-me. Agora todos falam em novos produtos. Novas plantas com efeitos relaxantes. Mas, para mim, não há nada melhor que sentir a água quente a escorrer-me no corpo. Aumento um pouco a pressão do chuveiro e a água começa a cair com mais força. Deixo-me ficar um tempo ali debaixo, deixando a água escorrer, observando cada gota percorrendo o meu corpo, deslizando lentamente, lentamente, até se separar de mim e continuar a deslizar pelo chão da banheira caindo pelo ralo.

Como esta pequena gota se assemelha a tantas pessoas na minha vida. Pessoas que conheço, me fascinam, me fazem acreditar que o mundo é melhor e depois desaparecem para um canto obscuro que jamais conseguirei alcançar.

Saio do duche já a pensar no que vou vestir. Apesar de ser Fevereiro e estar frio, opto por uma saia. Aquela que comprei contigo no Colombo no dia em que nos encontrámos por acaso. Aquela que primeiro achaste “hippie demais para uma senhora tão séria quanto eu”. Opinião que depois mudaste para um “fica-te lindamente”. Visto a saia na esperança que te lembres deste pequeno episódio (terá sido assim tão pequeno?) e que, através dele, possamos trocar umas boas gargalhadas, recordando este e outros momentos que temos passado juntos ao longo destes dois anos e meio.

Ao pequeno almoço leio as notícias, mais críticas e críticas sobre o grave estado em que o país se encontra. Aquelas críticas a que costumamos chamar “críticas de treinadores de bancada” que criticam para parecer que sabem muito sobre o assunto. Aqueles que, curiosamente, conhecem muito pouco do que está relacionado com as soluções. Logo no início do jornal um grande anúncio, que ocupava meia página, cheio de côr, flores e letras vermelhas rodeadas de cupidos que diziam “Hoje é dia de São Valentim, aproveite-o bem”. Sorrio perante a vulgaridade do anúncio (que mais se assemelha a um anúncio de uma festa de Carnaval) e digo para mim própria “é o que tenciono fazer”.

Saio de casa e entro no carro. Ponto morto, ajusto os espelhos, ponho o cinto e coloco o CD das “incontornáveis músicas lamechas” com as quais tanto gozas e que sabes de cor. Vou conduzindo a pouca velocidade. Ainda paira uma leve brisa matinal e o trânsito de Lisboa começa a fazer-se sentir.

Chego ao escritório um pouco mais tarde do que é habitual. À minha espera tenho um casal que quer iniciar o seu processo de divórcio. Não resisto a pensar na ironia de terem escolhido este dia para tomarem tal decisão. Peço-lhes para me darem uns minutos. Entro no meu gabinete, ligo o computador e olho para a nossa fotografia que está em cima da minha secretária (das poucas fotografias em que estamos juntos que se aproveitam). Recordo o dia em que a tirámos. Estávamos os dois um pouco tocados pelo álcool. Cada um a lamuriar-se dos seus grandes problemas evidenciados pelo vinho verde aos quais tínhamos dado pouca atenção até aí. A certa altura uma voz: “meninos juntem-se”.

- “Fomos apanhados em flagrante”, dizes-me colocando o teu braço por cima dos meus ombros e sorrindo para a máquina. O teu toque...Afasto estes pensamentos e mando entrar o casal decidido a divorciar-se no dia de São Valentim.

...

Saio para almoçar no nosso restaurante italiano preferido e escolho uma mesa para dois. Enquanto espero vou observando os casais que se encontram no restaurante a festejar a beleza do amor que apenas surge um dia por ano. Um dia no qual nos lembramos da pessoa que amamos, lhe compramos um presente, vamos jantar juntos e desfrutamos a noite. Tudo numa atitude que começa a tornar-se mais uma tradição que um sentimento a dois.

Passados alguns minutos a empregada aproxima-se e pergunta-me se quero escolher ou se espero pelo meu acompanhante. Sempre na suposição de eu ser uma mulher muito apaixonada neste dia em que nos cruzamos na rua com homens que levam ramos de rosas vermelhas nas mãos.

Nunca gostaste de flores. Sempre as associaste à morte, devido ao ritual que as pessoas têm de colocar flores nas campas dos entes que já faleceram. Suponho que isso tenha a ver com a morte do teu pai, de uma forma tão repentina que te arrasou durante semanas em que comecei a recear o teu olhar tão vazio e desprovido do habitual brilho que me conforta e me faz sentir como me sinto cada vez que te vejo (e não apenas um dia por ano). Escolho uma massa e continuo a observar a imensa felicidade e troca de carinhos que se faz neste dia. Sinto a tua falta neste momento. Quanto não gozaríamos com as vulgaridades e com a felicidade, muitas vezes fingida que se nota nestes dias. Épocas marcadas pelo consumismo e em que o amor, deixado para trás todos os dias, surge, qual Rei D. Sebastião.

A mesma empregada de há pouco traz a massa e, com um ar muito compreensivo e calmo, com a voz mais consoladora que consegue encontrar pergunta-me: “Posso retirar o prato, ou vai continuar à espera do seu acompanhante”. Não querendo desfazer a suposição da rapariga ponho o meu maior sorriso e respondo, “não, pode retirar o prato, como sozinha”.

É curioso como neste dia as pessoas até se lembram daqueles que tomam as suas refeições sozinhas todos os dias. No entanto, só neste dia é que merecem um olhar compreensivo e uma voz consoladora.

Acabo a massa, saboreio o último gole de vinho e peço um café. Pego no pacote de açúcar que tem escrita a seguinte frase “aja como se o seu maior sonho fosse uma realidade”. Tal como no anúncio do jornal sorrio e digo para mim própria “é o que tenciono fazer”.

Penso que realmente começam a ser coincidências a mais e recordo aquela nossa conversa sobre os supostos acasos que nos acontecem quotidianamente. Afirmas com toda a certeza que não existem coincidências e que tudo acontece por algum motivo. Olho para ti com um misto de gozo e incredulidade, receando que o motivo pelo qual certas situações me aconteceram se tornasse mais importante que o que pensei na altura. Como sempre faço quando me sinto nervosa com um determinado assunto sorrio-te e mudo de conversa. Vês a minha atitude como um pequeno passo para vir a dar-te razão neste ponto e continuas a ler o “Adeus às armas” de Hemingway.

...

Regresso ao escritório e junto todos os documentos que preciso de levar para o tribunal. Um caso em que se decide a quem deve ser atribuída a tutela de dois menores. Se aos pais, que sempre os maltrataram ou a uma instituição de solidariedade. Ao questionar uma assistente social ela respondeu-me que estas crianças estão destinadas a sofrer e a seguir por maus caminhos. Respondo-lhe que as coisas não são bem assim, lamentando não poder alongar-me mais na minha opinião.

Para minha admiração, a assistente social veio ter comigo depois de terminada a sessão do julgamento. Pergunta-me como é que eu achava concebível aquelas crianças terem um futuro afastadas de “maus caminhos”, com um passado repleto de maus tratos, álcool, droga e uns pais que pouco lhes ligam. Digo-lhe que lhes basta saber aproveitar as oportunidades que surgirem e que se empenhem no seu prosseguimento. A assistente olha-me como se fosse uma criança convencida que a maior barbaridade deste mundo estava certa e diz-me, “a doutora vive num mundo de ideais”.

A assistente social não deixa de ter razão. Os dois vivemos constantemente preocupados com o mundo que nos rodeia e a pensar em pequenas soluções que embora não mudem muito, contribuem para que nos sintamos realizados por termos feito alguma coisa. Vários foram os projectos que iniciámos juntos. Várias têm sido as ideias. Várias as horas. Várias as conversas. A mesma vontade.


...

Depois do tribunal e de um regresso ao escritório por alguns momentos, decido ir dar um passeio de carro. Sempre gostei de conduzir. Não há melhor sensação que conduzir numa estrada, com pouco movimento, uma boa música e o pôr-do-sol. Durante a viagem volto a pensar na conversa com a assistente social e recordo o dia em que nos conhecemos. Tínhamos entrado para o escritório no mesmo dia e começámos logo a dar-nos bem. Talvez pela novidade muitas vezes atrair a amizade. Talvez por ter encontrado algo no teu olhar que me fez querer conhecer mais de ti. Talvez por no momento em que os nossos olhares se cruzaram, não termos conseguido afastar o olhar um do outro durante alguns segundos…Talvez. A partir desse dia começaram as conversas sobre filosofia, sobre literatura, sobre o significado de pequenas coisa que raramente alguém repara…

Passado algum tempo soube que estavas comprometido. Estavas à porta do escritório com uma rapariga que te olhava com cara de poucos amigos e que te virou as costas deixando-te com um olhar perdido. Perguntei-te se estava tudo bem e explicaste-me o que se tinha passado acabando a frase com: “ela é minha namorada, percebes?”. Na altura disse-te que sim, mas a verdade é que nunca percebi muito bem o que senti nessa altura. Foi um misto de mágoa, ciúme e surpresa. Nunca me tinhas falado em ninguém e, de repente, descubro que afinal havia uma mulher na tua vida. Alguém que, pelo que me disseste, te preenchia e te compreendia. Estive muito poucas vezes convosco, mas algo me dizia que ela não te compreendia verdadeiramente. Apenas queria transformar-te em algo que não és.

Tempo depois a aliança na mão direita. O compromisso. O quebrar da esperança. Novamente a mágoa, o ciúme, a surpresa. Durante uns dias distanciei-me de ti. Pensei que essa seria a melhor solução. Enganei-me. Quanto mais distante estava de ti, mais tudo em meu redor perdia o sentido. Um dia chegaste perto de mim e disseste-me: “Temos de falar”. Rapidamente tentei arranjar uma desculpa para o meu comportamento nesses últimos dias. Dizes-me: “Não achas que está na altura de partires para outra?”.

Todas as desculpas que tinha inventado foram assoladas pela surpresa e pelo receio do que querias dizer com aquela afirmação. Como poderias tu saber?

Como todas as pessoas que querem mudar de assunto pergunto-te: “O que queres dizer com isso?”. Explicas-me que já está na altura de esquecer a minha anterior relação. De dar o salto. Que não te dissesse que o que se passava comigo não tinha nada a ver com essa situação porque me conheces bem e o meu olhar era o de quem sofria por um amor perdido.

Estavas tão certo!

...

- Acabei com ela - dizes-me com o olhar e a expressão mais triste que algum dia te tinha visto.

Já sabia que vocês tinham acabado. Tinha reparado na falta da aliança na tua mão direita. Perguntei-te o que se tinha passado. Dizes-me que a culpa tinha sido tua, que nunca tinhas tempo para ela e que as coisas assim não podiam continuar. Digo-te que quando as coisas correm mal numa relação a culpa é sempre dos dois e não apenas de uma parte. Se assim fosse, em vez de ser uma relação tornar-se-ia num monólogo de duas personagens que de vez em quando se encontram.

Sorris tristemente.

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Paro o carro na estação do Oriente para um passeio à beira-rio. O rio, tal como a noite, sempre foram os meus confidentes. É neles que me encontro comigo própria. Passo horas e horas a observá-los, sem pensar em mais nada. Apenas aprecio a paisagem e o céu estrelado.

Numa conversa telefónica que durou até às duas da manhã dizes-me que também és um fã da noite. Não na sua vertente festiva. Sim na sua vertente filosófica (tantos problemas que a filosofia nos tem causado!). Na sua vertente que nos faz querer que o dia nunca nasça. Que nos faz sentir seguros. Perder todos os nossos medos que em muitos surgem nas últimas horas do dia quando se encontram sozinhos e com medo da solidão.

Nunca tive medo da solidão. Respondo-te. Sempre gostei de reservar tempo para mim. Para passear em Belém, para me perder em Sintra, para escrever, para ler um bom livro, para ouvir uma boa música…enfim tempo para estar comigo.

Acabámos por falar das nossas últimas relações. Situações em que a nossa independência muitas vezes considerada excessiva, acabou por causar problemas e desconfianças de traições inexistentes. Uma vez mais, como fazemos com todos os assuntos que algum dia nos fizeram sofrer, acabamos por ironizar com a situação.

Uma vez disseram-me que a ironia e o sarcasmo são as maiores armas que podemos ter na nossa vida.

Nada mais correcto.

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Volto ao carro. No caminho passo por um sem-abrigo que, com o seu maior sorriso me deseja um feliz dia, partindo sem esperar que lhe desse uma esmola.

Sempre achámos que os sem-abrigo são mais ricos de espírito que muitos milionários que por aí andam. Vivem desprovidos de bens materiais, sem se preocuparem se o que vestem parece bem ou mal. Sofrem com o frio, com a fome, com o desprezo, com os olhares repletos de pena e falsa compreensão que rapidamente é esquecida num dos restaurantes mais caros da cidade. Sempre os admirámos por, apesar de levarem a vida que levam, apenas se preocuparem em ter o suficiente para sobreviver um dia após o outro e mesmo assim serem felizes.

Ligo o rádio onde começa a dar a primeira música que ouvimos juntos. Recordo essa noite, no bar onde costumamos ir com os nossos colegas de escritório. Estávamos em frente um do outro, a discutir um novo projecto que se relacionava com um caso que tínhamos tido há pouco tempo. Pedias a minha opinião e o meu apoio. Depois de ver o empenho com que falavas e o brilho dos teus olhos que retratava o teu entusiasmo e te fazia parecer uma autêntica criança perante o seu novo brinquedo, fui incapaz de recusar. Entretanto, o cantor, sentado a um piano de cauda preto, começa a tocar os primeiros acordes daquela música que ambos conhecíamos tão bem. Mais uma vez os nossos olhares trocaram uma conversa interminável.

Fico ali parada a ouvir a música e a recordar.

A música acaba.

Ligo o carro, arranco e dou uma esmola ao sem-abrigo.

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Pouco tempo depois de arrancar um telefonema da sede do partido, com um pedido de desculpas pelo incómodo e outro pedido para me dirigir até lá. Apenas queriam que desse uma vista de olhos rápida a uns documentos que tinham acabado de chegar.

Muitos te criticaram por me teres mostrado o mundo da política e me teres convidado a entrar para o partido. Muitos me disseram que eras daquelas pessoas que só queriam mais votos e que assim que o conseguisses me deixavas para trás. Sempre soube que estavam enganados e inscrevi-me. A partir daí surgiu este projecto o qual jamais poderia ter surgido sem os conhecimentos que tive quando entrei. Empenhei-me em restaurar a sede e em, juntamente com pessoas fundamentais para o sucesso do projecto, encontrar soluções para a dinamizar.

Após quase um ano de “trabalho de bastidores” (como gostas de chamar à parte burocrática) conseguimos avançar e formar uma equipa sólida e com o único objectivo de ajudar a melhorar a sociedade em que nos encontramos.

Talvez sejam mais ideias filosóficos, mas continuo a achar que todos nós somos uns sem-abrigo em potência.

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Paro na livraria e passo um tempo na secção de poesia. Adoras brincar com o meu gosto para poetas depressivos, que só falam em dor, morte e sofrimento. Sempre que isso acontece recordo-te que a melhor poesia é a sentida e não aquela que se baseia em rimas forçadas e desprovidas de sentido. Apenas servem para embelezar. Para embelezamentos e falsidades já chega o mundo real, repleto de pessoas com máscaras que recusam tirar, no medo de saírem do normal (outra palavra que me intriga. Afinal o que é a normalidade?). Pessoas que fogem ao que são, apenas para respeitar as aparências e o que os outros pensam, os outros dizem, os outros fazem, os outros, os outros, os outros…

...

Regresso ao carro. Uma vez mais o inevitável assunto do amor.

“O que é o amor?”.

O amor é um lugar estranho…e por vezes doloroso!

Amamos, sorrimos, sofremos, choramos. Muitas vezes é esta a verdadeira dimensão do amor (sentimento tão belo e que ao mesmo tempo se pode transformar num autêntico fosso sem fundo). Amamos quando finalmente encontramos aquela pessoa. Alguém que nos faça levantar e achar o mundo cada vez mais belo. Sorrimos quando pensamos nessa mesma pessoa e nos momentos que podemos vir a passar com ela. Sofremos quando percebemos que, afinal, há um longo mar entre nós e a tal pessoa é inalcançável. Então choramos e o mundo torna-se negro, como um nevoeiro intenso que sentimos jamais conseguir ultrapassar.

No entanto, o ser humano parece ser alguém que gosta de sofrer as mazelas do amor. Gosta de voltar a navegar neste círculo vicioso de emoções e sentimentos e voltar a perder e a afogar-se no tal nevoeiro que teima em não deixar o sol entrar.

Todos nós gostamos de nos sentir como se estivéssemos a planar sobre o mundo. Como se nada mais importasse. Como se o mundo inteiro estivesse na imagem daquela pessoa que para nós é um mundo. No entanto, a imagem começa a ficar desfocada. Corremos para tentar alcançá-la. Gritamos cada vez mais alto para ela não nos deixar. Mas existe algo mais forte que teima em afastá-la de nós. Em insistir para que voltemos ao nevoeiro do quotidiano.

Pois é, a cada dia que passa começo a chegar à conclusão que ninguém consegue resistir a esse grande ciclo vicioso que se chama amor. Por mais que tentemos fugir, mais depressa ele nos persegue insistindo em levar-nos com ele para um mundo que nos conduzirá a um caminho incerto e íngreme. Um caminho no qual temos que avançar passo a passo sem poder calcular as consequências dos nossos actos. Um caminho que nos poderá conduzir a sentimentos contraditórios que conseguem pôr o nosso coração a bater num ritmo acelerado e a ficar cada vez mais despedaçado.

Não há fuga possível. Só resta uma solução: Entrar no círculo vicioso e esperar que ele um dia se abra e nos deixe ver a imagem por trás do nevoeiro.

...

Vou até ao supermercado. Mais rosas, mais corações, mais sorrisos que reflectem (ou tentam reflectir) a maior felicidade do mundo.

Será a felicidade permanente? Pelo contrário, a vida é cheia de pequenos momentos de felicidade que devemos aproveitar ao máximo.

Compro um bom vinho verde, juntamente com os ingredientes para uma boa refeição, com direito a entrada, prato principal e sobremesa.

...

Chego a casa. O conforto do lar. O sossego após o fechar da porta. Abro a janela. Já anoiteceu. Calma. Paz. Tranquilidade. Segurança. Um “Slims”.

Ligo a aparelhagem. Música clássica.

Ponho a água a correr e preparo um banho de espuma. A água a escorrer. Hoje não posso pensar em mais nada. Apenas em descansar.

Saio do duche. Visto uma roupa confortável. Preparo o jantar saboreando um copo de vinho.

Enquanto o jantar acaba de fazer, coloco o meu melhor vestido, maquilho-me e ponho a mesa para dois.

Música ambiente. Rosas. Velas.

Hoje é uma noite para comemorar.

Motivo?

Nenhum.

Hoje é apenas mais um dia igual aos outros.

Hoje é apenas mais um dia sem ti.

3 comentários:

Aline disse...

Lindo!!

Enquanto fiquei em casa e nao pude tomar café com a menina ço imensa desculpa, li o teu maravilhoso texto.
Identifico-me com as tuas palavras e sentimentos, afinal somos as duas sonhadoras e esperamos demais dos outros e depois desiludimo-nos. O nosso mundo de sonhos nunca descansa está sempre aqui para nos iludir. Mas nao conseguimos viver sem esse mundo.

Vou esperar pela continuação ;)

Beijos grandes

Rita Paias disse...

Bem só hoje vi o teu comentário :p
Realmente não consigo imaginar o mundo sem sonho nem utopia...

Quanto à continuação o tempo tem de ser muito :s

Beijinhos grandes

Joana Bonita disse...

Não passa nada.... de especial! Mas apetecia-me q algm me carregasse e levasse pa longe :D